quinta-feira, 3 de novembro de 2011

O conflito das dores





Há uma grande discussão circulando nas redes sociais iniciada com a sugestão de que o ex-presidente Lula deveria fazer o tratamento do seu recém diagnosticado tumor na laringe pelo Sistema Único de Saúde (SUS).


Enquanto os que fazem tal sugestão usam de ironia , já que o ex-presidente fará seu tratamento no hospital Sírio-Libanês, que é particular e de altíssimo nível, ao invés de usar os serviços que ele próprio criou durante sua gestão, há uma turma que não vê a menor graça ou sentido em fazer piada com o assunto, uma vez que se trata de uma doença séria e que atinge milhões de pessoas mundo afora, e muito provavelmente, pessoas dentro dos círculos de amizade e familiares dessa turma.


Essa discussão pode se estender por muito tempo e com muitos argumentos, sem que se chegue a uma conclusão, por um simples fato: duas coisas diferentes estão sendo medidas! E não há como somar ou subtrair coisas diferentes, pelo menos é assim que aprendemos desde o ensino fundamental (não se pode tirar laranjas de uma penca de bananas!).


É preciso fazer uma força pra se enxergar essa diferença, afinal, o que se está comparando? A resposta não pode ser outra: o que se compara são duas dores diferentes. Sim, dores! E eu explico:


De um lado está a dor dos que sofrem com o câncer, direta e indiretamente, que agonizam ou vêem agonizar seus amados, através da dor aguda que a doença causa, a ponto das medicações mais fortes serem o mesmo que água com açúcar. As complicações causadas pelo tratamento de quimioterapia ou radioterapia, que causam tanto mal-estar que podem levar o paciente à morte antes mesmo da doença. As cirurgias que se sujeitam, tendo às vezes partes do seu corpo ou órgãos mutilados para que se tenha chances de sobreviver. A dor, enfim, de ver aqueles que sofrem desse mal, muitas vezes, após anos de tratamento e luta, tombarem vencidos em seus leitos de morte.


Do outro lado, a dor daqueles que usam o sistema público de saúde, disponibilizado pelo governo, que na maioria das vezes é ineficaz, insuficiente para atender a todos, corrupto, que deixa milhares morrendo em corredores ou sem atendimento, em esperas intermináveis por vagas em leitos ou consultas, ou enterrados em labirintos burocráticos para conseguir algo que é de direito. Tendo sua vez desrespeitada porque alguém que conhece alguém dentro do sistema consegue ter prioridade no atendimento, pra citar só alguns dos problemas mais comuns.


Os que fazem a piada usam da arma mais comum às massas: a ironia! A ironia é um jeito de lidar com a própria dor, principalmente quando não há muito o que se fazer com ela. Essa impotência diante de um sistema de saúde tão precário não é muito diferente da impotência daqueles que sofrem com o câncer. São duas impotências, muito mais semelhantes do que as dores que carregam. E contra essas impotências as pessoas deveriam se unir.


A piada sobre a instituição que o ex presidente Lula deveria realizar seu tratamento é também um apelo. Um apelo de todos que necessitam de tratamento de saúde e utilizam serviço público. Um pedido para que aqueles que criam um serviço deveriam utilizá-lo, principalmente no setor público, para então conhecê-lo melhor. E eu concordo com isso.


Existe uma piada irônica sobre uma frase que não é, mas dizem ser de autoria do Bill Gates, dono da Microsoft, em que ele diz "Windows? Que Windows? Eu uso iOS (sistema operacional da maior concorrente da Microsoft, a Apple)". Enquanto uma frase dessas soa hilária, uma vez que só mesmo em piada isso seria possível, dentro do nosso sistema de gestão pública, isso é uma realidade. Políticos e seus familiares utilizam planos de saúde particular! 


Como isso pode ser aceito? Como o Lula que trabalhou 8 anos como presidente da República, que diz ser um homem simples do povo, , que tanto promoveu seu trabalho em campanha para eleger a atual presidente, que formou o sistema da saúde que atualmente é utilizado pela maioria dos cidadãos, usa um serviço particular?


Outro dia, na rádio Band News, o jornalista comentava uma experiência interessante que teve no Canadá, quando estava diante do ministério do transporte daquele país, junto a um amigo canadense, quando passou  por eles um senhor caminhando, vindo de um ônibus que havia parado ali perto, que os cumprimentou e entrou no prédio. Intrigado, o jornalista olhou para seu amigo e este respondeu: "este é nosso ministro dos transportes!".  Enquanto isso, nossos políticos se locomovem em carros luxuosos e helicópteros, pagos e mantidos com dinheiro público, isolados e acima dos serviços que eles disponibilizam para nós.


Esse tipo de atitude não é restrita a pessoas do PT. Gostaria de lembrar que o ex presidente Fernando Henrique Cardoso, após o fim do seu segundo mandato, foi morar na França. 


Como não se incomodar com esse descaso? Como não se sentir ofendido em ver esse tipo de tratamento especial para quem fornece um serviço tão ruim? E como não ver a palavra câncer sem se lembrar do sofrimento vivido por nós ou parentes?

Eu conheço essas dores. As duas. E gostaria de contar uma história para mostrar isso. Ela é longa e pessoal. É a história de meu pai, Laudelino da Silva, conhecido por muitos como o seu Lino.


Meu pai sempre tratou de todos os seus males (e não foram poucos) no Hospital do Servidor Público Municipal (HSPM) de São Paulo. Porém, apesar de estar reclamando para médicos deste hospital desde julho de 2008 de dores na região abdominal, sequer um raio-x da região lhe foi solicitado.


Ele foi diagnosticado com um tumor no fígado não neste hospital mas num hospital do Estado, o Hospital do Grajaú, na zona sul de São Paulo. Apesar do diagnóstico ter ocorrido graças a um ultrassom em setembro de 2008, a gravidade da doença só pôde ser compreendida um mês depois, em meados de outubro, porque a máquina de ressonância magnética deste hospital permaneceu quebrada neste período e tivemos que pagar para fazê-la em um laboratório particular. 


Na última semana de outubro de 2008, dias antes de completar 70 anos de vida, após analisar os exames que havíamos feito, os médicos do HSPM, onde meu pai optou por receber tratamento, nos avisaram que não poderia mais ser feito nada, devido à agressividade e crescimento rápido do tumor, que dobrou de tamanho em um mês, e que seria uma questão de tempo, pouco tempo, até o fim da sua vida.


Meu pai, que possuía uma trajetória de vida que daria um livro valioso (e talvez algum dia eu escreva esse livro), havia sofrido muito em sua vida. Da infância pobre que teve, abandonado pela mãe, criado pelo pai alcóolatra e pela madrasta, que o castigava muito. Da inconstância nos trabalhos na adolescência, por sua imaturidade e falta de compromisso até o ingresso no serviço público, iniciado como lixeiro e aposentado como motorista da Secretaria Municipal de Transportes. Do casamento com minha mãe, mulher corajosa que o amou sempre, e sempre esteve ao seu lado, na alegria e nas muitas tristezas, como a morte de uma de minhas irmãs, com apenas 1 ano de idade, na saúde e nas muitas doenças, como o alcoolismo e o tabagismo, que após anos e anos de consumo o levaram a diversos males, como a uma trombose que quase o matou e lhe amputou uma das pernas, e a diabetes, que comprometeu sua recuperação nesse período e lhe amputou a segunda perna, tudo isso quando ele tinha apenas 56 anos de idade, poucos anos após ter se aposentado. 


Ele foi obrigado a abandonar a bebida e o cigarro. Esse último lhe causou um mal imenso devido à abstinência, que o fazia passar mal, sonhar e ficar irritado por muito tempo. A diabetes o acompanhou também, no começo descontrolada, fazendo com que ficasse estrábico por um tempo e passasse muita fome, pois estava altíssima e ele não podia comer além do necessário, para não causar um mal maior.


Mas estes problemas ficaram no passado. Quando começou a estudar o espiritismo e compreender e aceitar sua situação, meu pai não se sentiu mais uma vítima, mas alguém que tinha uma oportunidade nova pela frente. Livre do álcool e do cigarro, ele começou a trabalhar, ajudando deficientes físicos e seus parentes a conhecer seus direitos. Adaptou seu carro e ele mesmo o dirigia. Se uniu mais ainda à minha mãe e ambos começaram a trabalhar juntos, a mãe produzindo e ele vendendo chocolates, além de trabalhar como motorista particular, o que ele adorava. E sempre ajudando aqueles que o procuravam.


Ele continuou trabalhando mesmo depois que soube de sua doença. Na verdade, meu pai trabalhou até o dia 21 de dezembro de 2008, um domingo antes do natal, quando a dor finalmente o impediu de sair de casa. Naquela semana nós o vimos se transformar de um homem forte e robusto que era, para a figura esquálida de um paciente terminal. Passamos o natal juntos, toda a família, na sua casa. Nos despedimos todos, carinhosa e emocionadamente. No dia 28 de dezembro, apesar de sua insistência em ficar em casa, decidimos que não havia mais condições dignas de mantê-lo ali e o levamos para o HSPM, onde ele foi tratado adequadamente, como muitas outras vezes. 


O seu tipo de tumor, apesar de tantos males, lhe causou um bem: como seu fígado havia falido, seu sangue não era filtrado e antes que a dor pudesse ser tão grande, seu cérebro, como todos os seus órgãos, foi parando de funcionar e ele já não sentia mais dor.


Meu pai desencarnou no dia 2 de janeiro de 2009, às 20h, nos meus braços. Seu corpo foi enterrado no cemitério do Campo Grande, próximo aonde moro hoje, na tarde ensolarada do dia seguinte, acompanhado de todos os seus familiares e de diversos amigos e colegas, que muitas histórias boas tinham para se lembrar dele, e muito a agradecer.

Durante o período de descoberta da doença e tratamento, eu o acompanhei de perto, levando-o sempre que podia ao médico. Foi então que pude viver a tristeza de utilizar o sistema de saúde público, muitas vezes precário, e a alegria de encontrar muitas vezes médicos muito bons e atenciosos. A tristeza de ver meu pai sendo levado desta vida por uma doença terrível, e a alegria de ter me aproximado ainda mais dele, assim como toda minha família.


Eis porque eu digo que conheço ambas as dores. E não me incomodo com os comentários irônicos feitos para o ex presidente Lula pois entendo que a ironia é com o serviço de saúde, e não com o câncer. Aos que sofrem ou sofreram com o câncer e se ofenderam com a ironia, eu peço que reconsiderem, pois vocês não são o alvo dela. 


E aos que fazem ironias, eu espero que um dia possamos fazer mais do que usar subterfúgios! Que possamos tomar ações para transformar em realidade esses desejos escondidos por trás de nossos comentários irônicos.


Beijos e abraços a todos.
Paulo Bomfim

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